segunda-feira, abril 10, 2006



SIDA E CUIDADOS PALIATIVOS

Inês Chaves[1]


“... uma doença transforma-se no mal do século porque cristaliza/simboliza a própria maneira como uma sociedade vive colectivamente o medo e a morte.
Nesse sentido, a doença é tão importante pelos seus efeitos imaginários como pelos seus efeitos reais.
A SIDA não escapa a esta regra: não tardou a sair do mundo médico para questionar os próprios fundamentos da nossa sociedade.
Presente na vida quotidiana, obriga-nos a reflectir e, eventualmente a modificar os nossos comportamentos.
Nenhuma doença, na época contemporânea, nos incitou tanto a interrogar-nos sobre a nossa identidade, os nossos valores, o nosso conceito de tolerância e de responsabilidade.”
MONTAGNIER (1995)

“O diagnóstico de HIV/SIDA é um evento traumático porque a doença é conhecida como tendo uma evolução progressiva, não há tratamento curativo conhecido e o prognóstico é mau” (UNGVARSKI e FLASKERUD, 1999).

A Síndrome da Imunodeficiência Adquirida

A síndrome da imunodeficiência adquirida (SIDA) foi descrita pela primeira vez em 1981, nos Estados Unidos da América, tendo sido identificada em homossexuais do sexo masculino com pneumonia por Pneumocystis carinii e sarcoma de Kaposi. Pouco tempo depois foi reportada na Europa com características epidemiológicas, imunológicas e clínicas idênticas, constituindo-se, actualmente, como uma pandemia, com 34 a 46 milhões de infectados. VIH é transmitido, principalmente, através do contacto com líquidos orgânicos (sangue, esperma e secreções vaginais) de indivíduos infectados, sendo as principais formas de transmissão – sexual, sanguínea e mãe-filho. A nível mundial, predomina a transmissão sexual de VIH -1, sendo VIH-2 transmitido, quase exclusivamente por via sexual.[2]
Existem várias classificações aceites dos diferentes estadios da doença. A Organização Mundial de Saúde (OMS) distingue quatro fases: assintomática; estadio inicial, estadio intermédio, estadio final. O autor MONTAGNIER refere que a história natural da doença tem três etapas – a primo infecção, a fase silenciosa e a doença clínica.
Os sintomas mais frequentes e, que surgem desde o início da infecção e, permanecem durante todo o curso da doença, são a fadiga, dor e insónias no entanto, podem ocorrer também sintomas gastro-intestinais (infecções - cytomegalovírus ou cyptosporidium), sintomas do foro respiratório, provocados por patologia infecciosa pulmunar (pneumonias – Pneumocytis carinii ou bacterianas e infecção pelo bacilo da tuberculose), sintomas cutâneos provocados por infecções fúngicas ou bacterianas (Herpes simplex ou Herpes zoster), sintomas provocados por tumores malignos (Sarcoma de Kaposi, podendo ter localizações cutâneas, gastro-intestinais e brônquicas) ou linfomas, sintomas neurológicos centrais (encefalopatias) ou periféricos (neuropatias, retinopatias), outras manifestações resultantes de infecções oportunistas de qualquer outro aparelho.[3]
De acordo com SIMS E MOSS (1995) a primeira causa de morbilidade e mortalidade de doentes com SIDA são as infecções oportunistas. Os problemas fisiológicos apresentados pelos doentes decorrem em primeira instância do estadio de doença em que se encontram. O espectro da sintomatologia pode ir desde a total ausência de sintomas até à presença de inúmeras doenças.
A introdução dos esquemas de terapêutica anti-retroviral tripla (HAART-higly active antiretroviral therapy) mudou radicalmente a história natural na infecção VIH-SIDA. No entanto, as expectativas iniciais de uma possível erradicação viral através de terapêutica HAART prolongada não se confirmaram e as reacções adversas, bem como a emergência de resistências aos anti-rectovirais, constituem problemas difíceis numa proporção significativa dos doentes. Por outro lado, uma supressão prolongada da virémia através da terapêutica HAART não conduz a uma completa reconstituição imunitária.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) adverte que a “SIDA não provocou uma, mas sim três epidemias mundiais interrelacionadas: a infecção pelo VIH; a SIDA propriamente dita e as reacções e respostas sociais, culturais, económicas, políticas e pessoais às duas primeiras epidemias. Esta última epidemia faz com que os infectados pelo VIH e os doentes com SIDA sejam excluídos da família e da comunidade e inclusive sejam repudiados pelo pessoal da saúde, no momento em que mais precisam de atenção e cuidados” (FRONTEIRA, 2002).
Sendo clinicamente a infecção por HIV considerada como uma doença crónica, toda a atenção que possa ser dada à qualidade de vida dos seus portadores, por parte dos profissionais de saúde é uma exigência. O impacto da doença na qualidade de vida das pessoas com SIDA está relacionado com diversos factores, nomeadamente com a própria natureza da doença que em certos casos é altamente incapacitante, produzindo alterações visíveis, aliando-se também o facto dos seus portadores serem estigmatizados pela sociedade; a importância de perceber se os anos de sobrevivência são vividos com qualidade, uma vez que a esperança de vida das pessoas afectadas por este síndrome é cada vez maior; função dos profissionais de saúde de proporcionarem cuidados que aumentem o bem-estar, tendo em consideração os aspectos biológicos, sociais, culturais, espirituais de cada pessoa.
A tripla dimensão, médica, social e cultural da infecção, faz da doença um verdadeiro concentrado de factores de exclusão. O estigma da morte provoca reacções de rejeição ou de fuga, cria e acelera processos de exclusão e marginalização. O estigma da doença encontra-se associado a comportamentos reprovados ou ilegais. Os processos de auto-exclusão são derivados não somente pela persistência da imagem de doença, como também a antecipação dos efeitos de morte anunciada. Aparentemente, quanto mais a medicina progride, maior é o medo que temos da morte e mais negamos o seu carácter real e inevitável. O progresso da medicina e a melhoria das condições de vida permitiram alterar as expectativas de vida, esperando-se hoje que a morte ocorra numa idade avançada. A infecção por VIH/SIDA veio contrariar estas expectativas, ao confrontar os seres humanos com a morte de adultos jovens.
A SIDA é considerada um grave problema de saúde pública. A nível individual não existe nenhuma dimensão da vivência que não seja afectada. Cuidar destes doentes implica contemplar um programa centrado nos mesmos, tornando-se parceiros nos cuidados em vez de simples beneficiários. Trata-se de um processo de personalização, isto é, não se considerar meramente o corpo, mas sim o ser humano como um todo. O “objecto” passa a ser a pessoa doente e não a doença em si. “Tal como não há doenças, há doentes, não há morte, há pessoas que morrem” SUBTIL e GOMES (1997).
Os doentes com SIDA englobam-se no grupo de doentes com doença crónica, avançada e não oncológica com necessidades específicas para as quais a metodologia dos cuidados curativos se torna desadequada e em que a paliação tem um papel primordial. O apoio em cuidados paliativos a estes doentes é um imperativo ético. É preciso garantir a justiça e a equidade no acesso aos cuidados de saúde, nomeadamente paliativos, para este numeroso grupo de doentes.

Os Cuidados Paliativos e a Intervenção Social

Os cuidados paliativos pretendem ser uma resposta activa aos problemas, necessidades e sofrimento gerados pela progressão das doenças crónicas e incuráveis. O sofrimento decorre de uma multiplicidade de perdas, de adaptações, pressões/transtornos psicossociais (revelação do diagnóstico a familiares e amigos, mudanças do estilo de vida, sensação de perda de controlo, decisões a tomar na fase terminal da doença, decisões sobre os cuidados médicos que desejam, mudanças no diagnóstico – conhecimento que atingiram os critérios de SIDA, etc.), medo do futuro e de sintomas que vão surgindo, não correspondendo esta situação exclusivamente à fase avançada da doença, como tal a dictomia cuidados curativos/cuidados paliativos tende a esbater-se, no sentido de cada vez mais humanizar os cuidados de saúde prestados aos doentes crónicos e suas famílias. Desta forma os cuidados paliativos não devem ser remetidos para uma ideia de “fim de linha”, mas sim assumir-se como uma intervenção estruturada e rigorosa, com componente cada vez maior à medida que as necessidades dos doentes assim o justificam (modelo de “transição progressiva”).[4]
Podemos assim, falar numa intervenção precoce dos cuidados paliativos. Muitos aspectos do tratamento paliativo são aplicáveis no início da doença e, não apenas no tratamento no final da vida, podendo ser combinado com o tratamento das infecções oportunistas ou outras doenças afins ou pode ser ele mesmo, o foco central da atenção quando o tratamento já não é eficaz ou quando os efeitos colaterais são maiores que os benefícios. Na intervenção precoce dos cuidados paliativos estão contemplados aspectos como a transmissão do diagnóstico, a adaptação às perdas, o controlo sintomático, apoio aos cuidadores/família, os “dilemas éticos” e as “advanced directives”.[5] A decisão de interromper o tratamento intervencionista deve ser tomada conjuntamente com o doente (se possível), família e profissionais de saúde. Assim, os cuidados paliativos tornam-se fundamentais no processo de adaptação à doença (ocorrem fases que oscilam entre a negação/ culpabilização/ medo/ ansiedade/ raiva/ falta de controle/ isolamento/ perda/ ambivalência/ aumento do controle de vida/ esperança) no controlo/tratamento sintomático (comunicação, alimentação, mobilidade, respiração), de forma a aliviar o sofrimento e melhorar a qualidade de vida a nível físico, psicológico, social e espiritual, uma vez que a doença progride continuamente e a sua evolução é imprevisível; as capacidades físicas podem estar parcial ou totalmente reduzidas; a descriminação social pode ocorrer; a dependência de profissionais de saúde é prolongada; as perspectivas de futuro são mais ou menos limitadas. Convém ressaltar a enorme repercussão familiar, a sobrecarga e o desgaste que estas situações representam para as famílias e outros cuidadores envolvidos, cujo apoio deve ser sempre assegurado.
O medo da morte é algo que a maioria das pessoas só começa a experienciar quando as circunstâncias da vida as colocam frente a frente com a possibilidade do seu próprio fim. O conhecimento do diagnóstico de uma doença para a qual não existe cura e, um prognóstico limitado, leva a pessoa a considerar a inevitabilidade do término de vida. A evolução da doença e os múltiplos internamentos hospitalares, tendem a ser muito dolorosos e geradores de grande ansiedade, sendo frequente observar-se o desinvestimento de projectos pessoais, afectivos, profissionais; a vivencia da espera angustiante pelo fim, bem como sentimentos de inutilidade, auto-descriminação e ambivalência face à morte.
Importa referir que o medo da morte traduz-se na incerteza do como vai ser? Se será doloroso? Do que acontecerá após a morte? (Andrés, 1995; Gifford, 1997). Se respeitarão as opiniões do doente em fase terminal? Se o médico informará quando já não houver benefício com a terapêutica? Como irão ficar as pessoas mais próximas após a morte do doente? (Cabodevilla, 1999; Kübler-Ross, 1992). “... o homem basicamente não mudou. A morte constitui ainda um acontecimento modonho, pavoroso, um medo universal...” Kubler-Ross (1992).
Desta forma, os cuidados prestados devem sempre basear-se numa abordagem holística do doente e da família (constituem a unidade de cuidados), assentando no controlo sintomático, na informação e comunicação adequada, no apoio à família e no trabalho em equipa. Torna-se fundamental abordar com o doente questões sobre a sua qualidade de vida e sobre os seus sintomas, de forma a avaliar o impacto que a doença e terapêutica estão a ter na sua qualidade de vida. Estes cuidados são possíveis e desejáveis no domicílio.
Outra abordagem que se torna necessária é falar sobre o prognóstico. Quando o doente desenvolve uma doença de rápida progressão... a morte é iminente, é importante transmitir essa informação, mas mantendo a esperança e, reforçando a mensagem de que poderá continuar a alcançar metas (por ex. o desejo de alguns doentes em viver até ao Natal, ou assistir ao casamento da filha – é possível ajudá-los a tentar chegar à “meta”), de forma a poder preparar/resolver alguns aspectos da sua vida como sejam a elaboração de um testamento, fornecer indicações para o funeral ou decidir onde querem morrer (Gifford & Cl, 1997; Grilo, 1999). A resolução de assuntos pendentes, financeiros ou pessoais, pode permitir que a pessoa se sinta bastante tranquila. Refira-se que a maioria das pessoas que morrem de uma doença prolongada como a SIDA, conseguem estar prontas para esse momento. No entanto, este facto não impede que, por vezes, a pessoa em fase terminal se sinta sozinha e abandonada. Hackett e Weisman (1974) defendem que o mais terrível e intolerável na ameaça da morte é a solidão, isto é, o sentimento de ficar à parte na vida dos outros.
A preparação da família para a perda/morte também deverá ter início antes do doente falecer e pelo tempo que for necessário, depois da morte.
Enquanto Assistente Social, pretendo agora focar a intervenção social em cuidados paliativos a doentes portadores de HIV/SIDA e suas famílias, fazendo uma breve abordagem da sua actuação.
O Assistente Social desempenha o papel de mediador proactivo e integrador de cuidados, a sua intervenção é determinante na percepção interdisciplinar do indivíduo, no respeito às idiossincrasias de cada um, na busca de qualidade de vida e cidadania e, na visão individual do doente. Deverá construir com o doente uma relação empática, por forma a poder identificar precocemente os problemas bloqueadores, possibilitando assim uma actuação eficaz e eficiente, em articulação com a restante equipa de saúde.
Enfatiza a gestão dos cuidados sociais através da intervenção psicossocial em questões como o medo, rejeição, a morte, de forma a atenuar a vulnerabilidade psicológica do doente e, permitir uma informação qualificada e resposta aos problemas.
Assim, na sua intervenção englobam-se funções como o acolhimento do doente e família; elaboração de um plano de actuação com o doente, tendo presente a realidade específica de cada indivíduo, articulando com os recursos da comunidade; prestar suporte emocional ao doente e sua família, aliviando problemas psicossociais resultantes da doença; informar o doente sobre os seus direitos (Regime não Contributivo - Pensão Social por Invalidez, Rendimento Social de Inserção; Regime Contributivo é comtemplado ao abrigo do Dec. Lei 216/98, em que o tempo de descontos necessário para requerer a reforma por invalidez é de 36 meses; medidas de protecção social, acesso gratuito aos cuidados de saúde, tratamentos e assistência, nos locais da sua conveniência, etc.). Os doentes com HIV/SIDA não beneficiam dos direitos estabelecidos para doentes crónicos, usufruindo apenas da isenção de taxas moderadoras.

Em termos conclusivos e, reforçando a ideia de que a SIDA é uma doença com graves consequências físicas e psicológicas, constitui-se como um fenómeno de natureza social acompanhado de processos de segregação social baseados em estigmas socialmente construídos e intimamente ligados às representações sociais desta doença, considera-se imprescindível e urgente garantir a acessibilidade a cuidados de saúde adequados a este tipo de doentes, de forma a que não sejam preteridos no sistema e que a qualidade dos cuidados prestados seja devidamente salvaguardada. Os CUIDADOS PALIATIVOS assumem um papel preponderante e, são considerados um direito de todos os cidadãos.

BIBLIOGRAFIA

- ANTUNES, Francisco; “Guia Prático de Acompanhamento dos Infectados por VIH”, Permanyer Portugal, 2ª edição, 2004.

- SOUSA, M.ª Margarida Oliveira; “Sida: E a Vida Continua - Impacto da doença na qualidade de vida na pessoa com Sida”; Lisboa, 2001.

- FLASKERUD, Jacquelyn Haak; “AIDS/Infecção pelo HIV”; Ed. MEDSI, Rio de Janeiro, 1992.

- PINA, Jaime; “Infecção pelo HIV e Pulmão”; Departamento de Pneumologia do Hospital de Pulido Valente; Lisboa, 1992.

- MARQUES, A. Lourenço; NETO, Isabel G; “Dor e Cuidados Paliativos” Permanyer Portugal; Lisboa, 2003.

- TWICROSS, Robert; “Cuidados Paliativos”; 2ª edição, Climepsi Editores; Lisboa, Novembro, 2003.

- PACHECO, Susana; “Cuidar a Pessoa em Fase Terminal – Perspectiva Ética”; 1.ª edição, Lusociência, 2002.

- ABIVEN, Maurice; et al; “Para Uma Morte Mais Humana – Experiência de uma Unidade Hospitalar de Cuidados Paliativos”; Lusociência, 2001.

- Instituto Superior de Serviço Social de Lisboa, ISSS Beja; CESDET; Rev. Intervenção Social nº 28 – Saúde e Intervenção Social; Dezembro 2003.

- NETO, I. Galriça; et al; Art.º “Cuidados Paliativos – Rigor e Qualidade”.

- Ministério da Saúde – Comissão Nacional Luta Contra a Sida; Ciclo de Conferências, “Ser Positivo no Combate ao Estigma e à Discriminação – Recomendações”, Assembleia da República, 3 de Junho 2003.

- SOARES, Amilcar; REIS, Ana Campos; et al; “ Manual de Auto-Ajuda para Pessoas com VIH/SIDA”.

- M. D., Laura Cheever; “ Cuidados Paliativos em HIV/SIDA”; 4ª Conferência Anual Brasil em HIV/SIDA.

- Documentação fornecida durante o Módulo – “Tratamento Sintomático II em Cuidados Paliativos”.


[1] Inês Chaves, Assistente Social do Centro Hospitalar de Lisboa (Zona Central) – Hospital Stº António dos Capuchos – Serviços de Neurocirurgia e Neurologia. Licenciada em Serviço Social no Instituto Superior de Serviço Social de Lisboa 1995-2000, Mestranda em Cuidados Paliativos 2ª Edição – Faculdade de Medicina de Lisboa (Fase de elaboração da Dissertação).

[2]ANTUNES, Francisco; “Guia Prático de Acompanhamento dos Infectados por VIH”, Permanyer Portugal, 2ª edição, 2004, p.1.
[3] SOUSA, M.ª Margarida O.; “Sida e a Vida Continua”, 2000, p.28,29.
[4] NETO, I. Galriça; et al; Art.ª“Cuidados Paliativos – Rigor e Qualidade”, p.1.

[5] NETO, I. Galriça; “Cuidados Paliativos nas Doenças Neurológicas Degenerativas”, II Mestrado de Cuidados Paliativos, Junho 2004

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